Apontamentos para a
história de Viseu

Viseu, um passado presente ou um presente sem futuro?

António João Cruz

(José Tudella, em A Voz das Beiras de 17-10-1985, sugere-me um tema: todos estamos de acordo na beleza do perfil que se entrevia quando se chegava à cidade vindo de Nordeste, uma colina povoada de telhados e de paredes brancas misturadas com algumas árvores que se adivinha nascerem em quintais, uma colina tranquila e bela ao olhar, coroada pelo granito da Sé e do Museu e pelas torres da Misericórdia; no entanto, há alguns anos essa imagem veio a ser modificada por um edifício novo que se acusa de crescer demais. Até aqui nada de excepcional: é sabido que por todo o lado é isso que acontece: paisagens ou monumentos que durante muito tempo foram usados como legenda são agora, por vezes quase de um dia para o outro, ou modificados ou completamente destruídos. A originalidade deste caso reside no paradoxo seguinte: hoje, quando aquele perfil da colina da Sé já não existe, a propaganda turística continua a usá-lo como sé ele ainda ali estivesse à espera do viajante, desde sempre e para sempre. E José Tudella interroga: «Se o perfil era tão belo que ainda o usam como legenda, porque o não conservaram? Se estão satisfeitos com o que fizeram, porque hão reproduzem a verdade actual?

A um tema tão aliciante, como poderia resistir? No entanto, simultaneamente, que outro tema mais difícil do que este, o de explicar esta nossa maneira de ser e de pensar? Este texto, contra todas essas dificuldades, é uma tentativa de viajar por essas águas. Apenas isso: uma tentativa.)

Sempre duvidei do valor da publicidade turística. Se a quem vai viajar se podem dar conselhos, apenas um será precioso: «Viaje segundo um seu projecto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário inventar até inventar inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor viagem» (José Saramago, Viagem a Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1981, p. 5).

No caso de Viseu tudo está mais esclarecido: a duvida transforma-se em certeza. O folhetozinho e o mapa que há alguns anos (não sei se ainda agora) eram distribuídos na Comissão Municipal de Turismo de Viseu eram, antes de tudo, um repositório de erros e de informações que induziam em erro (mostrei-os já em A Voz das Beiras de 24-2-1983). Agora existe um roteiro de verdade, o de Alberto Correia, mas é sobretudo um desafio para o viajante, não um texto que pretende mostrar Viseu como um vendedor evidencia a qualidade dos seus produtos. Esse roteiro é mais um diário de uma viagem do que um guia para quem vai viajar.

Portanto, o cartaz da Feira Franca de 1985 não traz nada de novo. É apenas a continuação de uma prática, a que se manifesta nesse folhetozinho e nesse mapa.

Por sinal, essa prática vem de longe. Na primeira metade do séc. XVII, Manuel Botelho Ribeiro Pereira vê Viseu como uma pedra preciosa engastada no meio de altas serras que põem a cidade a salvo de sobressaltos originados no exterior e preservam nessa jóia a pureza e os bons costumes (Diálogos Moraes e Políticos, Viseu, 1955, pp. 82-83 e 87-88). Em 1915, portanto muito antes da propaganda do Estado Novo, escreve A. Campos: «As portuguesíssimas terras de Viseu, que sendo o coração da Beira constituem naturalmente O coração de Portugal, quando esta formosa província encaramos como a mais portuguesa do país, que realmente o é pelo seu inegável fundo de tradições pátrias, pelas suas magníficas individualidades históricas, pelas notáveis características físicas e morais das gentes que a habitam... Basta saber-se que não muito longe daqui, oito léguas ao norte, entre o Douro e o Paiva, as altas e misteriosas paragens de Montemuro ainda abrigam e defendem dos assaltos da evolução social uma certa população montesinha, densa e curiosa nos aspectos etnológicos, que sem dúvida representa os restos da família nacional primitiva» (O Coração de Portugal. Evocações e panteismos da Beira Viziense, Porto, 1917, pp. XIX-XX).

Por estes e por outros discursos semelhantes, Aquilino Ribeiro diz em 1934: «Para os meus olhos Viseu é uma cidadezinha activa, dada ao optimismo, um pouco descuidada do destino trágico da vida, satisfeita com a sua mediocridade» (prefácio a Maximiano de Aragão. Viseu. Letras e letrados viseenses, Lisboa, Seara Nova. 1934, pp. X-XI).

Esses exemplos, que multiplicados se poderiam transformar num repositório sem fim, mostram o irrealismo prodigioso da imagem que os viseenses fazem de si e da sua cidade (para parafrasear o que Eduardo Lourenço diz sobre os portugueses, em «Psicanálise mítica do destino português», in Raiz e Utopia, 5/6. Lisboa. 1978. p.5).

Esse parece, pois, ser um problema particular de um problema nacional.

Esse problema nacional, manifestado na mítica Idade do Ouro que os portugueses têm sempre presente, interpreta-o Jorge Dias, em 1950, como uma das expressões da saudade, esse estado de alma sui generis que combina o lírico sonhador, o fausto de tipo germânico e o fatalístico de tipo oriental: «nas épocas de abatimento e de desgraça, a saudade toma uma forma especial, em que o espírito se alimenta morbidamente de glórias passadas e cai no fatalismo de tipo oriental» (Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, Lisboa, imprensa Nacional - Casa da Moeda. 1985, p. 27).

Embora o problema da decadência, aqui implícito, muito enraizado na geração de 70 e em particular em Antero de Quental, esteja hoje posto em causa (para mais pormenores veja-se o meu artigo «Introdução ao estudo da Feira Franca na 2.ª metade do séc. XIX», in A Voz das Beiras, 26-9-1985), não se pode deixar de notar que, nos últimos séculos, Viseu tem vivido numa posição secundária. Vive à margem das decisões políticas, vive à margem dos movimentos económicos mais importantes, vive a margem da inovação. A vida. que devia ser uma tentativa de criação permanente, uma escolha nunca terminada dos caminhos a seguir, tem em Viseu o sabor de um movimento imóvel. Esse espaço surge, por isso, como um mundo finito e ilimitado: todos os passos dados para a frente conduzem sempre ao ponto de partida (cf. James A. Coleman, Relatividade para Todos. Lisboa-Rio de Janeiro, Ulisseia, s.d., pp. 183-187).

Esta posição secundária em parte explica a imagem mítica sempre presente: quando o presente não agrada inventam-se outras imagens, que depois se preferem. Ouça-se a resposta exemplar de um bancário à pergunta se é necessária a construção de uma passagem subterrânea no Rossio: «Acho útil. Além disso todas as cidades importantes têm coisas destas» (Viseu Ilustrado, 1, Viseu, Abril de 1983, p. 24). Com uma passagem subterrânea para peões compra-se a ilusão de uma grande cidade. Provavelmente, com um argumento semelhante se construiu o edifício do MAS que hoje, passada a euforia momentânea, se quer esconder.

Mas, a que se deve essa posição secundária? O isolamento é uma resposta simples mas que complica tudo: a cidade de escassa importância económica, demográfica, política, etc, não participa activamente na vida do pais porque não existem comunicações adequadas; porque não existem comunicações adequadas não há nada de novo a crescer na cidade: porque não há nada de novo a cidade não se desenvolve; porque não se desenvolve não há comunicações, etc., etc.

No entanto, esta resposta é também ela uma ilusão. Por exemplo, no séc. XVI. quando em Portugal existem, pelo menos, onze cidades demograficamente mais importantes do que Viseu, quando as comunicações são, sem sombra de dúvida, mais difíceis do que hoje, floresce em Viseu uma notável escola de pintura. O impressionante número de publicações periódicas que em Viseu saem durante as duas primeiras décadas do nosso século, e todos os movimentos que acompanham esse movimento, é outro exemplo que não se justifica pelas comunicações. Elas são necessárias, é verdade, pois todos aprendemos com todos. Mas que não são suficientes, também é verdade.

Mais do que tudo é importante o querer. Independentemente de Viseu ser uma cidade pequena, afastada dos centros de decisão, afastada de tudo. Porque, como diz Camilo José Cela, uma coisa é ser-se da aldeia, outra é ser-se aldeão (entrevista em Jornal de Letras, Artes e Ideias, 130, Lisboa, 1-1-1985, p. 3).

O passado sempre presente em Viseu que muito orgulhosamente se apregoa na propaganda turística pode, afinal, significar um presente sem futuro.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «Viseu, um passado presente ou um presente sem futuro?», Voz das Beiras, 3ª série, 4, 14-11-1985, p. 2.

Artigo em formato pdf (versão publicada)

Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.