A Biblioteca Municipal de Viseu e a história da cidade
António João Cruz
1863: «Por conhecer por experiência própria a
grande falta que tem a cidade de Viseu, aonde nasci e me criei, de
uma Biblioteca Pública para uso e instrução de
seus habitantes: dôo com a melhor vontade à minha
pátria a minha copiosa e escolhida livraria de mais de dez mil
volumes1.»
António Nunes de Carvalho, «Conselheiro [...],
fidalgo cavaleiro, bibliotecário-mor da Casa Real, omendador
da Ordem de Cristo de Nossa Senhora da Conceição de
Vila Viçosa, lente jubilado da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra2» é o
autor da doação. Não são, no entanto, 10
mil os volumes, mas 6892 de obras completas e 800 de folhetos e obras
truncadas3. Consta, alguns anos depois,
que alguns desses volumes os obtivera A. Nunes de Carvalho alguns
anos antes no Convento de S. Francisco, em Lisboa, quando estava
à frente da comissão encarregada de receber os livros
provenientes das bibliotecas e arquivos das ordens religiosas
extintas4.
Com
esses volumes abre em 1864 a BMV no Paço dos Três
Escalões, ao lado da Sé, onde fica até 1953.
Passa, então, para o primeiro piso do edifício da
Câmara Municipal, no Rossio, e em 1960 ocupa o l.º andar
da Casa Amarela, antiga casa de nobres, onde hoje se
encontra5. Entretanto, dos menos de 8 mil
volumes que conta no início. chega-se agora aos 36
mil6.
36 mil volumes é hoje um número pequeno para uma
biblioteca não especializada. Pior, no entanto, é que
nesse número raras são as obras recentes, aquelas
verdadeiramente novas, sejam do domínio das ciências
sociais, sejam do domínio das ciências exactas.
Uma comunicação forte com o público poderia
ajudar a contrabalançar essa situação:
exposições periódicas bem organizadas e com
larga divulgação, a publicação de um
boletim, outras actividades. Porém, ela é inexistente
e o orçamento reduzido não o consegue
completamente justificar.
Por isso, a BMV ocupa no conjunto das bibliotecas portuguesas uma
posição de importância secundária7.
A quem a pretende utilizar deparam-se outras falhas.
Catálogo geral não existe. Em 1866 publicou-se um
que poderia ajudar, pelo menos. na procura de obras anteriores. No
entanto, inacreditavelmente, não consta que dele haja algum
exemplar na BMV!?...
Há uma lista dactilografada de manuscritos e
incunábulos mas é de pouca utilidade para quem os
não conhecer. No caso dos manuscritos torna-se quase numa
inutilidade pois, por exemplo, há diversos maços que
reúnem espécies de natureza diversa e apenas o
título vago atribuído aos maços é
indicado. Fica-se, assim, a desconhecer completamente o
conteúdo.
Em vez de catálogo há, numa das salas de leitura, um
ficheiro de autores e outro de títulos. Porém, algumas
fichas não se encontram na ordem e outras há que cortam
os títulos pelo meio de tal modo que algumas vezes é
impossível saber do que se trata.
Há um ficheiro de publicações
periódicas que não se encontra em nenhuma das duas
salas públicas mas que, por pedido, pode ser consultado.
Não está, no entanto, actualizado e pode-se tocar na
dúvida se determinada colecção está ou
não completa: um jornal que não tenha começado a
ser publicado num dos primeiros dias de Janeiro ou de que tenha
saído o último número bastante antes de Dezembro
é provável que tenha a indicação de
colecção incompleta.
Por outro lado, qualquer trabalho extenso torna-se difícil
devido à inexistência de qualquer fotocopiadora ou de
outro aparelho de reprodução8.
No entanto, quase paradoxalmente. qualquer estudo sobre a
história de Viseu deve ser feito também sobre as
consultas aqui efectuadas.
Isso deve-se a dois factos.
Na BMV existem algumas publicações locais, muitas de
pequena tiragem. que dificilmente se poderão encontrar noutras
bibliotecas. A colecção de periódicos é.
porventura. a mais importante deste fundo.
Entre 1848 e 1922 publicaram-se no concelho de Viseu 120 jornais e
publicações periódicas. Segundo a
classificação de A. Campos, 21 % são de
características académicas, 16,8 % republicanos, 16
% católicos, 10,1 % monárquicos, 9,3 %
literários. A importância que assim se entrevê
é, no entanto. modificada se atentarmos na
duração de cada um. Os jornais académicos
raramente ultrapassam os 40 números publicados, os
republicanos são também de pouca duração
como todos os outros referidos, à excepção do Districto de Viseu, órgão do Partido
Progressista, de que se publicaram 1089 números na l.ª
série, de 1879 a 1890. Pelo contrário. dos três
jornais operários, de um, A Voz da Oficina,
publicaram-se 1219 números entre 1898 e 1921 e de O Viriato, jornal que se diz político, instrutivo e
comercial, saem 3798 números entre 1855 e 1892. «Por tal
forma se popularizou esta folha escreve A. Campos em 1923
que ainda hoje na Beira muita gente emprega o termo Viriato
para designar qualquer jornal»9.
De metade destes 120 jornais há exemplares na BMV, a que se
juntam outros publicados nos restantes concelhos do distrito e os que
em Viseu saíram depois de 192210.
Juntamente com a colecção da Biblioteca Nacional, de
Lisboa, esta deve ser a melhor colecção de
periódicos de Viseu.
Este é um dos factos que torna indispensável a
utilização da BMV para o estudo da história de
Viseu.
O outro motivo reside na colecção de manuscritos,
constituída por alguns núcleos, individualizados pelos
assuntos ou tão-só pela proveniência11.
O mais conhecido e mais vezes consultado formam-no alguns textos
inéditos da historiografia visiense.
As Memórias Históricas e Cronológicas dos
Bispos de Viseu, escritas por Fr. Leonardo de Sousa, datadas de
1767, são um enorme repositório de 3 volumes que,
segundo alguém que bem os conheceu, «é o mais
notável catálogo dos bispos de Viseu»12.
É provável que, de igual modo, sejam de bastante
utilidade para o conhecimento da sociedade e da economia visiense,
sobretudo do século XVIII.
As Notícias de Viseu acompanhando o registo das
freguesias que presentemente organizam o concelho,
memória apresentada em 1838 à Câmara
Municipal por José de Oliveira Berardo, é importante
pelas estatísticas que apresenta: rendimentos das confrarias e
ordens religiosas, recenseamento dos fogos das
povoações do concelho, mapa com a
indicação do número de engenhos movidos pelas
águas das ribeiras do concelho, recenseamento dos fogos de
cada freguesia do bispado e mapa demográfico do concelho em
1834 que, por freguesia, apresenta o número de fogos, o de
habitantes segundo o sexo, o de nascimentos (distinguindo os sexos e
os expostos), o de óbitos (separando homens, mulheres e
crianças), o número de solteiros, casados e
viúvos e, finalmente, a população segundo os
escalões etários (menos de '7 anos, dos 7 aos 15, dos
15 aos 25 e dos 25 aos 60; em qualquer dos casos distingue os
sexos).
O Registo Bibliográfico e Jornalístico Visiense,
dois volumes de A. Campos, terminados em 1923, é um longo
inventário de publicações
periódicas13 e de autores de
Viseu e seu concelho onde, para cada, dá as «suas
características biográficas e enumeração
e detalhe dos seus trabalhos literários»14.
O segundo núcleo é constituído pelos
manuscritos de Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo. Como dele existe
um minucioso inventário15 torna-se desnecessário dar quaisquer outras
indicações.
O terceiro é formado pelo antigo arquivo da Câmara
Municipal: algumas dezenas de volumes das Actas das sessões
camarárias (1534 a 1950)16, os
livros de registos de juros (1772 a 1825), os de receita e despesa
(1702 a 1877), os de preços (1754 a 1877). os de prazos (1514
a 1836) e diversos outros livros, sobretudo dos séculos XVIII
e XIX, de registos de leis, de patentes, de privilégios, de
licenças, de fintas, de arrematações de rendas.
etc., etc. Pela proveniência, nele se poderia incluir as Notícias de Viseu, de José de Oliveira
Berardo, já referido.
Destes livros raras são as séries que se encontram
completas. Isso deve-se ao incêndio da Câmara em 1796,
às invasões francesas e às mudanças da
BMV.
O quarto núcleo teve origem nos arquivos religiosos
nos de algumas ordens e no do Cabido mas. sobretudo, no do
Seminário. Também aqui são as faltas numerosas
pois, após a implantação da República,
«os livros e demais recheio da biblioteca do Seminário
andaram aos montões pelas ruas da cidade. Dos que escaparam
[...] uns foram vendidos a peso aos comerciantes; outros
deram ingresso na Biblioteca e Arquivo Distrital»17.
Além de alguns estatutos religiosos dos séculos XVI
e XVII, formam-no os livros de assentos de entradas e saídas
do Oratório e do Seminário (1750 a 1890), de
noviços que professaram no convento de Santo António
(1674 a 1725) e de religiosos aí defuntos (1725 a 1834),
livros do cofre do Seminário (iniciado em 1857). de rendas do
Oratório (iniciado em 1787), de apréstemos do Cabido
(1575 a 1832), de ordenados do Seminário (iniciado em 1881) e
de foros pagos à Sé e um tombo das propriedades que a
ela pertenciam.
Finalmente, há alguns manuscritos de natureza e
proveniência diversa que, apenas por isso, podem formar um
outro núcleo (porém, ao contrário dos restantes,
este não tem qualquer unidade).
Nele se encontram os forais manuelinos de Viseu e Povolide,
vários maços provenientes das Câmaras dos
extintos concelhos do Barreiro, de Povolide e de Ranhados (pequenos
enclaves no concelho de Viseu), 5 volumes com traslados de
emprazamentos e outras escrituras dos séculos XII a XVI,
várias pastas de manuscritos do bispo D. Francisco Alexandre
Lobo e outra com manuscritos de diversas pessoas. Os maços
oriundos dos concelhos extintos e um outro do concelho de Viseu
são, sobretudo de natureza económica.
Embora esta colecção de manuscritos com interesse
para a história de Viseu existente na BMV já tenha sido
múltiplas vezes pesquisada e algumas pessoas a tenham
conhecido razoavelmente bem tal é o caso, por exemplo,
de Maximiano de Aragão, de Alexandre de Lucena e Vale e de
Amorim Girão , ela está praticamente por
aproveitar. À excepção de manuscritos com
interesse administrativo como as actas camarárias ou de alguns
outros como as Memórias Históricas e
Cronológicas dos Bispos de Viseu, de Fr. Leonardo de
Sousa, poucos são aqueles que chamaram a atenção
dessas pessoas. Isso deve-se sobretudo ao facto de a historiografia
visiense teimar em não sair do espaço da
história tradicional18. Por isso.
todos os outros domínios da história encontrarão
aqui fontes quase intocadas, algumas com importância que
ultrapassa largamente a história de Viseu. Exemplo são
as fontes de natureza económica: com estas e com outras que se
guardam fora da BMV um dia se poderá estudar um dos mercados
regionais de Portugal.
1 BMV, Actas da Câmara Municipal
de Viseu, 1862-1863, fs. 89 vº.
2 Ibidem.
3 Pedro Augusto Ferreira. Portugal
Antigo e Moderno, 12.º vol., Lisboa, 1890, p. 1811.
4 Ibidem. p. 1809.
5 «Obras raras e valiosas na
Biblioteca Municipal», in suplemento sobre Viseu de O
Primeiro de Janeiro. Porto. 27/2/1979, p. 10.
6 António Rocha, «A
Biblioteca Municipal de Viseu. Algumas
considerações», in Viseu Ilustrado, 6,
Viseu, Setembro de 1983, p. 7.
7 Por exemplo. nenhuma referência
nos guias de A. H. de Oliveira Marque (Guia do Estudante de
História Medieval Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa.
Estampa, 1979 e Guia de História da 1.ª
República Portuguesa, Lisboa, Estampa. 1981),
nenhuma referência na longa série de artigos reunidos em
«Biblioteca», in Enciclopédia Luso-Brasileira de
Cultura, 3.º vol,. Lisboa. Verbo, 1965, cols.
1268-1297. Apenas uma breve referência, sobretudo preocupada
com as edições raras, no artigo «Bibliotecas
Portuguesas», in Grande Enciclopédia Portuguesa e
Brasileira, 4.º vol., Lisboa-Rio de Janeiro. Ed.
Enciclopédia. s.d., p. 665.
8 Esta enumeração das
falhas da BMV foi, no essencial, retirada de António
João de Carvalho da Cruz, «A situação da
Biblioteca Municipal de Viseu», in A Voz das Beiras,464, Viseu, 15/9/1983. Este artigo teve uma resposta:
António Rocha, «A situação da Biblioteca
Municipal de Viseu. Esclarecimentos do director», in A Voz
das Beiras, 466, Viseu, 29/9/1983.
9 Do meu artigo «A imprensa
periódica visiense (2). Uma fonte de história
.social», in A Voz das Beiras, 488, Viseu,
15/3/1984.
10 No meu inventário «Viseu.
Roteiro bibliográfico», in Beira Alta, XL. 4.
Viseu, 1981, pp. 643-651, refs. 421-660, estão indicadas as
publicações periódicas do distrito existentes na
BMV.
11 Estes manuscritos estão
indicados, a partir da lista dactilografada depositada na BMV, em
António João de Carvalho da Cruz, «Viseu. Roteiro
bibliográfico», in Beira Alta. XLI, 1, Viseu,
1982, pp. 276-283, refs. 680-762.
12 Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, nova
edição preparada e dirigida por Damião Peres,
l.º vol., Barcelos, Portucalense, 1967. p. 68, n. 5
13 Aqui retoma e completa Maximiano de
Aragão, A Imprensa do Districto de Vizeu. Fragmento
Histórico, 2.ª ed. Viseu. 1900.
14 Nele se baseou Maximiano de
Aragão, Viseu. Letras e letrados viseenses, ed.
de Aquilino Riheiro, Lisboa, Seara Nova, 1934.
15 Mário Fiúza,
«Breve descrição dos manuscritos e papéis
particulares de Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo que se guardam
na Biblioteca Municipal de Viseu», in Fr. Joaquim de Santa Rosa
de Viterbo, Elucidário, ed. crítica de
Mário Fiúza, reimpressão, Porto-Lisboa,
Civilização, 1984, 1.º vol., pp. 33-51.
16 Alexandre de Lucena e Vale publicou o
primeiro dos volumes no Livro dos Acordos de 1534 da Cidade de
Viveu, Viseu, 1945, e os restantes, até 1914,.
resumiu-os de maneira deficiente numa série de 5 volumes,
todos separatas da Beira Alta: Livros dos Acordos da
Câmara de Viseu. Índice dos livros do século
XVI, Viseu, 1969; Um Século de
Administração Municipal. Viseu. 1605-1692, Viseu,
1954; Viseu do Século XVIII nos Livros de Actas da
Câmara, Viseu, 1963; Livros de Actas da
Câmara de Viseu. Século XIX, Viseu, 1968; Os Finais da Monarquia e Começos da República nas
Actas da Câmara de Viseu. 1900-1914, Viseu, 1971.
17 José Henriques Mouta citado em
Maria Fiúza, «Introdução», in op.
cit., p. 13.
18 Cf. António João de
Carvalho da Cruz «Cultura e sociedade: a
historiografia visiense», in História, 63,
Lisboa, Janeiro de 1984, pp. 84-88.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «A
Biblioteca Municipal de Viseu e a história da
cidade», Ler História, 6, 1985, pp. 149-151.
Artigo em formato pdf
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