Aquilino, testemunha de um viver
António João Cruz
Neste ano em que se comemora o centenário do nascimento de Aquilino Ribeiro, múltiplos aspectos de um só rosto se tem evocado. Aquilino artífice da língua, Aquilino soldado das liberdades, Aquilino cidadão, Aquilino homem — são só algumas dessas facetas, de que as suas obras e os seus companheiros nos dão testemunho.
Depois de, durante muitos anos, ser considerado um escritor menor, por causa dos ambientes rurais e primitivos que povoam os seus livros, esquece-se agora que Aquilino foi testemunha de um viver que hoje já não existe Esse testemunho, no entanto, longe de diminuir o valor da sua obra literária, só o acresce, só a torna mais preciosa.
Os seus livros de temática beirã formam uma preciosa colecção de fotografias. Mostram-nos ambientes, mostram-nos objectos, mostram nos homens. São fotografias que apenas têm algumas décadas mas mostram-nos um mundo que, frequentemente, se assemelha mais ao do séc. XIX do que ao de hoje.
Muitas vezes, o testemunho de Aquilino sobre o viver tradicional dos habitantes da serra da Nave é um testemunho único. Os seus livros tomam-se, por isso, numa rara fonte histórica, tornam-se importantes para a reconstituição dessa sociedade.
Dessa sociedade é Aquilino testemunha privilegiada: nesse mundo viveu mas para ele pôde olhar, também, de outros mundos. Portanto, olhando-o de mais longe viu-o de mais perto e com maior lucidez. Notou as pequenas coisas em que ninguém repara porque se está sempre a ver. Olhou a vida de frente e compreendeu-a nesse mundo de gestos profundos e violentos. Conheceu-a melhor que os outros pois a viu na serra da Nave e em Viseu e noutras paragens. Viu o belo, mas viu também os conflitos. Os seus personagens não são, por isso, bonecos de cartão, são homens, têm vida. Porque Aquilino viu por dentro e viu de fora, viu de perto e viu de longe.
Essa sua posição privilegiada manifesta-se no seu olhar sobre a serra. Mas o saber de um olhar não é um saber que se segure. Ele poisa sobre tudo e sobre todos. Em 1934 sobre a cidade de Viseu, no prefácio ao livro póstumo de Maximiano de Aragão, Letras e Letrados Viseenses: " Para os meus olhos Viseu e uma cidadezinha activa, dada ao optimismo, um pouco descuidada do destino trágico da vida, satisfeita com a sua mediocridade". Embora escritas há meio século, onde se encontram hoje palavras que melhor retratem a cidade?
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Aquilino, testemunha de um viver», A Voz das
Beiras, 562, 17-10-1985, pp. 1-2.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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