Apontamentos para a
história de Viseu

A vida da serra:
Os terrenos incultos na 2.ª metade do séc. XIX

António João Cruz

A região granítica do centro e do norte da Beira, do Fundão a Lamego e de Almeida à serra das Talhadas é, em meados do séc. XIX, "proporcionalmente mais agricultada e mais povoada do que todas as outras partes do país", se exceptuarmos a zona ocidental da Beira (Carlos Ribeiro e Nery Delgado, Relatório Ácerca da Arborisação Geral do Paiz, Lisboa, 1868, p. 23).

No entanto, esse espaço, onde se situa Viseu, não está completamente aproveitado. Por um lado, "todas as extensas cumiadas e quase toda a parte alta das encostas das serranias e montes (...) são ou escalvadas ou cobertas de mato com algum raro pinhal"; por outro, "muitas planuras e encostas, que só a largos intervalos recebem cultura para produzirem magras colheitas de centeio" — na década de 70, uma vez em cada 8 ou 12 anos (Gerardo Pery, Geographia e Estatistica Geral de Portugal e Colonias, Lisboa, 1875, p 100) — "ocupam extensas superfícies na parte oriental da província, nos contrafortes das serras que correm de nascente a poente, desde as alturas de Trancoso e Penedono até Arouca e S. Pedro do Sul". No total, entre solo desaproveitado ou apenas apto para floresta e solo onde seria vantajoso substituir por esta os cereais existentes, não menos de 2/3 ou mesmo 3/4 da superfície total (Relatório..., p. 24). Esta estimativa de 1868 é confirmada por números de 1915, sem dúvida, mais seguros: o espaço então ocupado por castanheiros, carvalhos, pinheiros, e matos diversos e a terra inculta representam, no distrito de Viseu, 65 % da área total, 2/3 portanto ("O distrito de Viseu sob o ponto de vista agrícola", in Boletim da Direcção Geral da Agricultura, XII, 4, Lisboa, 1915, p. 118). Então, em 1915, a superfície verdadeiramente inculta no distrito é de 41 % do total (Ibidem). Em 1871, Manuel Tavares de Oliveira Coutinho, intendente de pecuária do distrito de Viseu, diz que talvez corresponda a cerca de metade da superfície total da província da Beira (Recenseamento Geral dos Gados no Continente do Reino de Portugal em 1870, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 381).

O mapa apresentado no relatório de Carlos Ribeiro e de Nery Delgado, de 1868, mostra os terrenos incultos ou mal aproveitados ao redor de Viseu. Na sua maior parte, correspondem às zonas montanhosas: as serras do Caramulo e da Arada a Oeste, as do Montemero, de Leomil e da Lapa a Norte e a da Estrela a Sudeste.

Estes espaços são, normalmente, cobertos por gramíneas rasteiras, tojo, urze, carqueja, sargaço e rosmaninho; "porém alguns montes há em que nem esta fraca vegetação os reveste, tais são os que circundam Penedono e Sernancelhe, totalmente escalvados" (Recenseamento..., p. 381). No entanto, quase todos "são aproveitados na pastoreação de grande quantidade de gado ovino que há na província e para o corte de matos que são empregados no fabrico dos estrumes" (G. Pery, op. cit., p. 100).

Da mesma maneira que o moinho, o forno, certas lameiras de pascigo e as águas da rega, a serra faz parte da riqueza comunal, é propriedade de todos (Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental (História, paisagem, folclore), Lisboa, Bertrand, 1983, p. 19). Por isso mesmo, ela está sujeita a um calendário fixo.

No Verão, do S. João ao S. Bartolomeu ou mesmo até princípios de Setembro, os gados transumantes ocupam a serra, sobretudo na do Montemuro e na da Estrela. Para o Montemuro vão os gados dos concelhos de Nelas, Carregal e S. João de Areias. "Um pastor ajusta uma dada extensão de pastagens, e vem depois fazer o alavão, que consiste em juntar de diferentes proprietários o número de cabeças que a pastagem pode sustentar, e com os criados precisos, cães e aprestos necessários para cozinhar e para a fabricação dos lacticínios" partem então para a serra. Os pastores e os gados. Milhares de animais (Recenseamento..., p. 381 e Abel Botelho, Mulheres da Beira, Porto, Lello e Irmão, s.d., pp. 135-136).

Em Outubro, depois de a Junta da Paróquia soltar a serra, "desabam sobre as andurriais as hostes de polainas de junco e tamancos com testeiras de ferro, gadanho e enxada roçadoira em punho. Escolhem com ávida sofreguidão os sítios favoráveis, e toca a engabelar roçadas com que prover lareira, forno e presépios" (A. Ribeiro, op. cit., pp. 18-19). Estes matos são também utilizados como estrumes (G. Pery, op.cit., p. 100).

Nos dias de Inverno, libertos de outros trabalhos, sempre que o clima o permite, os habitantes das abas da serra levam o seu gado para os montes baldios (Recenseamento..., p. 379).

Depois, com a Primavera, começam os matos de novo a crescerem até voltarem, no Verão, os gados transumantes. Este é o seu ciclo: "de par que fornecem o leito dos currais, alimentam um pegulhal lazarento e degenerado” e, se os zagais e caçadores de laço dão licença, convertem-se em prodigioso inçadoiro de coelhos e perdizes" (A. Ribeiro, op. cit., p. 20).

Embora durante alguns períodos a serra esteja povoada de homens e de animais domésticos, o povoamento fixo é raro e concentrado: em 1887, na serra do Montemuro, pode-se percorrer "18 a 20 quilómetros sem que se encontre o mínimo vestígio de habitação humana" (A. Botelho, op. cit., p. 135). Quando surgem, esses povoados se caracterizam pelas grandes dimensões e pelos seus usos comunitários (Orlando Ribeiro, "[Beira Alta]. Introdução geográfica", in Guia de Portugal, 3.º vol., t. II, 2.ª ed. Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian, 1985, p. 743). É uma espécie de apoio: os homens juntos com os outros homens, contra a natureza que aí quase sempre é rigorosa.

Neste rosário de serras a cercar Viseu a comunicação se quebra. As estradas tendem a evitá-las e os outros homens. Em 1933 escreve José Leite de Vasconcelos: "os serranos só acordavam para a vida histórica, quando o fisco lhes batia à porta, ou em ocasião de eleições, em que iam para a urna congregados e guiados pelo seu Pároco" (cit. em Manuel Fonseca da Gama, Terras do Alto Paiva. Memória histórico-geográfica e etnográfica do concelho de Vila Nova do Paiva, Lamego, 1940, p. 35). Três séculos antes, esses espaços são inanimados, formam uma protecção do vale que definem no seu interior: "esta nossa cidade com sua comarca está cercada de expugnáveis e altos muros de serras", uma pedra preciosa que a Natureza engastou no meio delas (Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Diálogos Moraes e Politicos, Viseu, 1955, p. 87). São dois mundos que se desconhecem.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A vida da serra: os terrenos incultos na 2.ª metade do séc. XIX», A Voz das Beiras, 561, 10-10-1985, pp. 4, 6.

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Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.