Apontamentos para a
história de Viseu

A perseguição ou o tipógrafo terrorista
(A propósito do último número da revista 'Beira Alta')

António João Cruz

Foi há 5 anos, em 1980, que começou a perseguição.

Até aí, eu só publicara pequenos textos no boletim do Centro Juvenil de Arqueologia e Etnografia de Viseu, o Dolmen, um pequeno boletim batido à máquina e tirado a stencil. Aí não entrava tipógrafo nenhum pois era eu próprio que dactilografava os meus artigos e, por vezes, grande parte de cada número. Por isso, antes de o tipógrafo terrorista me começar a perseguir, eu não conhecia tipógrafo algum. Não sabia sequer que existiam tipógrafos terroristas. Só então, quando essa sombra se começou a formar atrás de mim, conheci as suas acções e, mais do que isso, senti-as.

Como é que isso começou?

Em 1979 comemoraram-se os 75 anos de existência do Instituto Liberal de Instrução e Recreio. Hoje em Viseu ninguém dá por essa instituição que mora ali na Rua Direita, junto ao Senta aí. No entanto, antes da República tinha uma vida muito activa e frequentemente os jornais da cidade referiam as acções dos seus membros. Nessa ocasião, eu e o Alberto Coimbra passava-mos várias horas por dia a folhear na  Biblioteca  Municipal as páginas esquecidas dos jornais visienses que há muito se deixaram de publicar. Sem um rumo muito definido, procurávamos os artigos de José Coelho, Amorim Girão e Maximiano de Aragão e tudo o que nos parecia constituir elemento de interesse para a história de Viseu. Não sei como, num desses dias resolvemos fazer um estudo sobre as lutas republicanas e a chegada da República a Viseu. Pelas referências que estávamos sempre a encontrar, parecia indispensável pesquisar no Instituto. Começámos, então, a esmiuçar os livros de actas da associação. Numa das noites, quando a pesquisa ia já adiantada, um dos membros da direcção fala-nos numa publicação comemorativa do aniversário, que o Instituto pensava editar. E acrescentou:

— Um artigo que vocês fizessem sobre o Instituto era capaz de ser interessante...

Algum tempo depois, quase no final do ano ou já em 1980, está na tipografia: 15 páginas dactilografadas, um título: "O Instituto Liberal de Instrução e Recreio (1904-1926)".

Quando as provas estão prontas para serem corrigidas, aparece-nos pela frente uma hora de felicidade completa. É um limiar que se transpõe e um horizonte novo que se adivinha mas não se vê ainda. Agora, em vez dos artigos dactilografados, nas mãos está o papel branco impresso a negro, onde um corrige as gralhas enquanto o outro lê o manuscrito.

A esse momento de felicidade segue-se, algumas semanas depois, um momento quase de revolta: aquilo que tinha sido imaginado como letras de forma sobre papel branco, como todas as revistas e como todos os livros, era, no primeiro exemplar da publicação em que pegávamos, um texto sobre laranja, sobre verde, sobre rosa, sobre amarelo. Cada folha, uma cor diferente. Era a apresentação visual que o Instituto escolhera — ou os sócios que por ele se encarregaram da publicação. Mas, além disso, o tipógrafo terrorista dera a sua ajuda:

— Trocaram tudo!... — falou um dos sócios. Tínhamos dito para colocarem as fotografias na segunda parte, mas puseram-nas na primeira!

E assim o artigo levou as fotografias onde não as devia levar.

Este foi o primeiro contacto que tive com o tipógrafo terrorista. Por esses dias, ele deve ter feito promessa de não me largar. Não lhe conheço ainda o rosto embora saiba que se esconde ainda na mesma tipografia. Conheço-lhe, no entanto, as marcas que deixa naquilo que demorei horas a fazer e, às vezes, mesmo dias ou semanas.

Um dos seus métodos preferidos é o rapto: durante estes cinco anos não sei já quantas foram as palavras ou as frases que misteriosamente têm desaparecido. Para trocar as pistas e confundir a investigação, por vezes, introduz outras que eu nunca escrevi ou altera a pontuação. Mas eu sei que é ele.

O seu golpe mais audacioso deu-o só agora. Pelos vistos, os outros não passavam de pequenos ensaios.

Foi no fascículo 4 de 1984 da Beira Alta, volume que só agora me chegou pelo correio. No meu artigo (continuação) sobre "A demografia visiense" a sua acção terrorista tomou várias formas.

Provavelmente à custa de explosivos, fez saltar um gráfico dez páginas relativamente ao comentário que o devia acompanhar. Este, talvez apanhado por alguns estilhaços, sem saber muito bem onde sossegar, andou também algumas páginas para a frente. Agora estão separados e as famílias que assim os vêem sofrem terrivelmente, quase mais do que os próprios.

Um pouco depois, enquanto as forças da ordem se encarregavam desse caso, tentou mais alguns raptos. No entanto, talvez devido ao barulho que se aproximava, teve que abandonar outras legendas e outros gráficos sem conseguir concretizar os seus intentos. Os infelizes, bastante assustados com a tentativa, foram encontrados mais tarde, perdidos no meio do texto do artigo.

Não satisfeito com isto, o tipógrafo terrorista voltou ao princípio, às páginas 676-677, e, não se sabe ainda com que meios, conseguiu levar à loucura uma inofensiva tabela que pacificamente pretendia mostrar a evolução do preço do azeite em Viseu de 1754 a 1877. A vítima agora não dá de si. Começa a mostrar o que acontece a partir de 1754 mas quando chega a 1776, passa, sem explicações, para 1800. Parece recuperar de novo a razão, más mal se refere a 1808 retrocede para 1777. Mostra então momentos de saúde. Breves, no entanto. Pois em 1799 salta logo para 1839. E isto continua até 1877 sempre que alguém a interroga sobre o sucedido. Agora, segundo o que médicos e outras testemunhas lhe ouviram dizer, o nosso calendário é novo: os anos que outrora, graças às forças da ordem, eram mantidos em fila indiana sem poderem trocar de posições, ganharam liberdade quase total. Agora já não vão direitos de 1754 a 1877 mas por uma série de saltos, ora para a frente, ora para trás: 1754-1776, 1800-1808, 1777-1799, 1839-1847, 1809-1838, 1848-1877. Em vista destas falas os médicos concluíram que o tipógrafo terrorista, provavelmente á força, tentou levar para a sua casa esta tabela. Não teve tempo de completar o seu recrutamento e, por isso, a sua vítima ficou neste estado.

Todos estes atentados foram já comunicados às entidades competentes. As forças zeladoras da ordem vão agora no seu encalço. Teme-se, no entanto, que antes de capturado consiga fazer mais alguns atentados. Ou então teme-se que estabeleça contactos com outros tipógrafos, Porém, a sua prisão está certa. Espero que assim acabe a minha perseguição.

P.S. Esse artigo que agora foi publicado, essa vítima do tipógrafo terrorista, sofreu ainda outros atentados.

Devido à sua extensão, cerca de 70 páginas dactilografadas, o artigo não foi publicado todo de uma só vez. Saíram algumas páginas no número anterior da Beira Alta, saíram agora estas e, para ficar completo, faltam ainda cerca de 20 páginas. No entanto, em vez de ser fragmentado por onde se poderia esperar, no fim dos capítulos, tem sido cortado por onde calha. Por isso as páginas que agora foram publicadas começam por quatro só com tabelas que, à primeira vista, não se percebe para que servem nem o que estão aí a fazer.

A bem da revista, penso que esse é um aspecto a merecer mais atenção no futuro.

 

Referência bibliográfica:

António João Cruz, «A perseguição ou o tipógrafo terrorista (A propósito do último número da revista 'Beira Alta')», A Voz das Beiras, 560, 3-10-1985, pp. 2, 8.

Artigo em formato pdf (versão publicada)

Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.