Introdução ao estudo da Feira Franca na 2.ª
metade do séc. XIX
António João Cruz
A
evolução
Em 1925, um geógrafo, autor da melhor visão de conjunto sobre a cidade de Viseu, escrevia, desolado, que "infelizmente, do seu antigo esplendor, a antiquíssima Feira Franca de Viseu pouco mais conserva hoje do que o nome..." (A. de Amorim Girão, Viseu. Estudo de uma aglomeração urbana, Coimbra, 1925, p. 58). Não é então a primeira vez que encontramos uma referência desse género. Já em 1866 o articulista de um periódico, viseense se lamentava da decadência da Feira, ainda que nessa ocasião, dizia ele, não houvesse outra em Portugal onde tão elevadas se mostrassem as transacções (Cit. em José Alves Madeira, "A Feira de S. Mateus há 115 anos", in Programa. Feira de S. Mateus, Viseu, 1981, p. 39). E, em 1895, escrevia M. Aragão: "Há trinta anos a feira franca tinha uma concorrência e importância extraordinária (...). Depois disso e actualmente, posto que tenha continuado a ser a melhor do país, a concorrência e as transacções têm diminuído consideravelmente (Maximiano Aragão, Vizeu (Apontamentos historicos), 2.º vol., Viseu, 1895, p. 185).
Em contrapartida, um cronista da cidade escrevia em fins do primeiro terço- princípios do segundo de seiscentos, entenda-se cento e trinta anos depois de a Feira estar alguns anos sem se realizar, que "vai em tanto aumento que lhe faz pouca ou nenhuma vantagem a de S. Bartolomeu de Trancoso (Manuel Botelho Ribeiro Pereira, Diálogos Moraes e Políticos, Viseu, 1955, p. 470). Em 1758, na resposta ao inquérito para o Dicionário Geográfico do P.e Luís Cardoso, dizia um dos curas da cidade, o P.e Manuel Lopes de Almeida, que a Feira Franca "é muito concorrida de todas as partes da Europa, a ela concorrendo espanhóis, franceses, imperiais ingleses, holandeses, malteses e, finalmente, de todas as nações da Europa" ("Viseu no Dicionário Geográfico", in Beira Alta, XXVIII, 4, Viseu, 1969, p. 646). É preciso dar um desconto ao que fiz: facilmente se reconhece uma grande dose de exagero talvez devida à vontade de enaltecer as grandezas da cidade. Porém, isto só pode significar uma feira importante e sem problemas. Outro dos curas, o P.e José Mendes de Matos, escreve que as produções locais "não só fazem a terra abundante mas sustentam por mais de doze dias, quatro ou cinco mil pessoas efectivamente que habitam nesta cidade pelo tempo da Feira Franca, não sendo pouca a que também os gasta" por ocasião da feira Mensal (Ibidem, XXVII, 2, Viseu, 1968, p. 181) — forma muito inábil de dizer que era bastante grande a afluência à Feira pois o número aí apontado de 4 mil pessoas corresponde à população residente (António João de Carvalho da Cruz, "A demografia viseense (Sécs. XVI - XIX) Introdução ao seu estudo", em publicação na Beira Alta).
A darmos crédito a estes testemunhos, que não são únicos, podemos traçar a evolução da Feira, no seu movimento secular, do seguinte modo: primeiro ocorre uma expansão, iniciada no séc. XVI, que torna a Feira uma das mais importantes do Reino, como se ensina na Aula do Comércio, instituída pelo Marquês de Pombal (Jorge Borges de Macedo, Problemas de História da Indústria Portuguesa no Século XVIII, 2.ª ed., Lisboa, 1982, p. 142); depois vem a decadência... A passagem da expansão para a decadência ocorre entre os limites marcados pelo Dicionário Geográfico e pelo artigo em 1866.
Uma fonte de outro tipo, inédita ainda, permite melhor precisar esse intervalo. Trata-se da série das rendas pela Feira proporcionadas à Câmara Municipal entre 1793 e 1802 (Receita da Câmara. 1793, ms. da Biblioteca Municipal de Viseu, Est. Ms.):
1793: 984.000 réis
1794: 1.019.900
1795: 1.096.900
1796: 1.071.800
1797: 1.199.144
1798: 1.278.800
1799: 1.261.500
1800: 1.176.900
1801: 2.001.000
1802: 2.316.440
Por ela se vê que a tendência de crescimento é nítida e de acordo com o movimento geral do comércio português, que quadruplica entre 1789 e 1806 (J. B. de Macedo, op. cit., p. 235).
Assim, essa inversão de sentido no crescimento da Feira terá que ser colocada no séc. XIX, entre o seu começo e 1866, o que está de acordo com M. Aragão que a coloca a meio do século, na década de 60.
Em suma: pelo menos até ao começo do séc. XIX dá-se uma expansão da Feira; depois segue-se-lhe uma fase de decadência, iniciada por meados do século, que se prolonga pelas primeiras décadas do séx. XX.
Alguns problemas colocados
pela evolução da Feira
Porém, aqui surgem alguns problemas.
Primeira dúvida: o que está por detrás dos termos expansão e decadência? Com eles quer-se significar que tudo o que na Feira se vende segue um só movimento? Quer-se significar que tudo o que na Feira se vende segue um só movimento? Quer-se significar que todos os géneros têm a mesma oferta e a mesma procura? Mesmo antes de se procurar uma resposta se vê que este é um modelo demasiado simples. Por isso, provavelmente, ele terá de ser matizado: enquanto alguns produtos deixam de ser vendidos outros passam a ser mais procurados. A evolução do comércio da Feira entre 1866 e 1886 ilustra bem esse facto: por exemplo, enquanto há uma diminuição da venda de gado há um aumento da venda dos restantes géneros (José Alves Madeira, "A Feira de S. Mateus há 115 anos", in Programa. Feira de S. Mateus, Viseu, 1981; Pedro Augusto Ferreira, Portugal Antigo e Moderno, 12.º vol., Lisboa, 1890, pp. 1555-1556):
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Vendas (em réis) |
Movimento (%) |
1866 |
1886 |
Gado |
125.000.000 |
80.000.000 |
-36,0 |
Outros géneros |
526.586.600 |
656.849.000 |
+24,7 |
Assim, como o movimento da Feira não é homogéneo não podemos traduzi-lo por um único movimento mas, apenas por uma série de movimentos individuais, alguns orientados, no mesmo sentido mas outros em sentidos opostos. Por isso, não podemos, sem mais nada se acrescentar, falar na expansão ou na decadência da Feira.
Vista a evolução da Feira Franca não como um só movimento mas como resultado de uma série deles, surge-nos uma segunda questão. Antão de Quental, em 1871, nas Conferencias Democráticas, dizia a propósito da vida económica nacional posterior à época áurea dos descobrimentos: "a produção decresce, a agricultura recua, estagna-se o comércio, desaparecem uma por uma as indústrias nacionais" (Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, 3.ª ed., Lisboa, 1979, p. 24). Um século depois, na mesma corrente de ideias, uma consagrada historiadora da economia é de opinião que, de um modo geral, "a partir do reinado de D. Manuel as feiras entraram numa fase de decadência, sem que, no final da sua linha evolutiva, as possamos comparar com as suas avoengas medievais" (Viigínia Rau, "Feiras", in Dicionário de História de Portugal, reimpressão, 2.º vol., Porto, 1979, p. 542). A assim suceder, a serem correctas as observações feitas por Antero de Quental e seus discípulos, temos que, por um lado, reter a originalidade da Feira Franca de Viseu: a expansão verificada até ao séc. XIX. Estamos perante uma excepção a um modelo que, por isso, importa estudar e tentar explicar de modo a que o modelo possa ser enriquecido. Por outro lado, surge-nos outro problema que é o de saber como a decadência da Feira na segunda metade de oitocentos se adapta a esse modelo geral e o de tentar explicar o seu atraso de, pelo menos, três séculos.
Do ponto de vista prático vê-se que o modelo de expansão e decadência não é nem preciso nem vantajoso porque nos levanta alguns problemas adicionais. Porém, tem pelo menos interesse do ponto de vista teórico? Esta é a terceira questão que importa levantar. Também aqui nada parece estar a seu favor: a tese de Antero de Quental tem sido contestada porque se fundamenta "na existência de um modelo uniforme de transformação histórica" no sentido em que tem "um conteúdo definitivamente finalista" (Miriam Halpem Pereira, "Decadência" ou subdesenvolvimento: uma reinterpretação das suas origens no caso português" in Política e Economia (Portugal nos séculos XIX e XX), Lisboa, 1979, p. 51). Se outros motivos não houvesse para se abandonar esse modelo este seria suficiente pois ao falarmos na decadência da Feira estamos a utilizar um referencial para o qual a Feira Franca evoluiu em sentido contrário. Estamos, assim, a supôr que o movimento desse referencial — que, no entanto, não é sequer definido explicitamente — é o movimento ideal que todas as transformações devem originar. Por isso, diz Jorge Borges de Macedo que "não pode, propriamente, falar-se da evolução das feiras em termos de prosperidade e decadência, mas em evolução de funções e lugares" (Jorge de Macedo, "Feira", in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Lisboa, Verbo, 8.º vol., 1969, col. 503).
Esta perspectiva introduz um outra variável: o espaço. Depois do tempo, o espaço. "A economia tem de ser considerada na sua configuração espacial" diz-nos V. Magalhães Godinho ("A evolução dos complexos histórico-geográficos", in Ensaios, 2.º vol., 2.ª ed., Lisboa, 1978, p. 19). Assim a Feira Franca de Viseu tem que ser estudada num espaço onde se podem operar modificações. E esse espaço, sobretudo económico, geográfico e social, que desencadeia e condiciona a sua evolução, é ele que a explica.
Olhando a Feira segundo esta perspectiva, os meados do séc. XIX surgem como o momento em que ocorre uma modificação da relação de forças existentes na sociedade viseense. Por detrás dessa mudança estão motivos económicos, motivos sociais, outros motivos. Eles todos se manifestam na Feira. Por isso há que os identificar, há que os separar para se tentar medir a importância de cada um. Só depois se poderá tentar compreender a evolução da Feira Franca de Viseu.
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Introdução ao estudo da Feira Franca na 2.ª
metade do séc. XIX: (1) A
evolução», A Voz das Beiras,
558, 19-9-1985, pp. 2, 8; 559, 26-9-1985, pp. 4, 6.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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