Os caminhos da história, das
comunicações e da política (À
atenção de José Tudela)
António João Cruz
É grato saber que alguém lê o que se escreve. Mais ainda quando está presente o interesse.
José Tudella diz (in A Voz das Beiras, 554, 22-8-1985) que leu com interesse os meus quatro artigos sobre os transportes e comunicações em Viseu, sobre o que houve de permanência e de transformações ao longo de vinte séculos. E eu aproveito agora esta oportunidade para dizer que leio com interesse o pouco que José Tudella publica n' A Voz das Beiras.
Não se trata, ao contrário do que poderá aparentar, de uma retribuição esboçada à pressa depois de lido esse seu último texto. Não! Lembro-me de uns artigos, já há alguns meses, com que José Tudella pretendeu entrar em polémica, salvo erro, com Reinaldo Correia e que, se não me engano, não tiveram resposta. O assunto era, também, os transportes e comunicações a propósito do caminho de ferro. Lembro-me que na ocasião cheguei a esboçar umas notas sob o título de "Bairrismo e bairrismo" mas que, já não sei porquê, nunca cheguei a concluir. Deixei então passar a ocasião de deitar umas achas para a conversa que, afinal, não chegou a haver. Agora, gostaria de manifestar a José Tudella a minha admiração pelo modo como perspectiva alguns dos problemas viseenses, modo a que, por certo, não será estranho um certo afastamento, e, de passagem, dizer mais algumas coisas.
Em primeiro lugar, uma explicação.
Depois da tentativa de Amorim Girão, em 1925, a historiografia viseense pouco avançou Publicaram-se desde então muitas páginas. Porém, nada se progrediu em termos metodológicos e escassos foram os novos problemas abordados. Obtiveram-se algumas certezas, confirmaram-se algumas hipóteses, destruíram-se outras, mas as pistas encontravam-se quase todas na tese de Amorim Girão. No entanto, os problemas colocados pela investigação histórica e os métodos por ela utilizados modificaram-se profundamente nestes 60 anos.
A série de artigos que tenho publicado sob a epigrafe de "Para uma história de Viseu", série de que fazem parte os quatro artigos que José Tudella leu, tem sido uma tentativa de conduzir a história de Viseu por caminhos que não sejam os já há muito trilhados, uma tentativa que gostaria que mostrasse a história como algo de vivo e como algo que sempre nos toca. É claro que breves artigos de jornal não podem passar de esboços rápidos e grosseiros, contributos para uma nova história de Viseu que importa escrever mas de que, ao mesmo tempo, se está ainda tão longe.
Além disso, estes artigos estão profundamente marcados pelas leituras feitas em cada ocasião e pelas preocupações de cada momento. Por isso, ora parecem ser dedicados a alguma época ou a algum tema, ora se sucedem sem relação alguma entre eles.
Isto tudo é para explicar a José Tudella a causa de se gorar a sua expectativa, a causa, de os caminhos de ferro aparecerem apenas referidos através de uma série de interrogações. Embora mencione a importância que poderia ter a pesquisa nos jornais viseenses dos fins do séc. XIX e princípios do séc. XX, nunca folheei esses periódicos a pensar nos caminhos de ferro. Portanto, não podia dizer o que desconheço.
Aqui, convém, fazer uma observação: essas questões que voluntariamente deixei por responder não estão tão ligadas ao modo como o caminho de ferro chegou a Viseu, como José Tudella sugere ou compreendeu, mas às suas consequências.
A história dos caminhos de ferro em Portugal, do Cabralismo ao Fontismo, a história que José Tudella conta resumidamente com as palavras de Canavarro de Morais, é importante. Sem dúvida. Mas, por um lado, é uma história que está pouco ligada à região de Viseu e, por outro, é uma história que com algum pormenor já está feita (por exemplo, nos estudos recentes de António Lopes Vieira). A reacção dos visienses a um novo meio de transporte, de formas e tamanhos novos e de velocidades novas, julgo que é um assunto bem mais interessante porquanto nos leva pelos caminhos da história das mentalidades, pelo mundo dos homens visienses dos fins do séc. XIX e do seu pensar. Essa história, sim, deve ser empreendida a nível local Todas essas reacções estão marcadas pelas características regionais, limitadas pelos conhecimentos que em Viseu circulam, moldadas pela visão das coisas — um testemunho de Viseu oitocentista. Por isso, é nessa direcção que se deveria conduzir a pesquisa em Viseu ou noutra qualquer cidade.
***
Meto agora por outros caminhos, direito ao que José Tudella defende no fim do seu artigo: que as novas ligações rodoviárias continuam a ser traçadas pela política e que esquecem o que deveria ser feito, uma ligação rápida com o Porto.
Penso que num dos artigos sobre os transportes deixei clara a influência que o Porto, mais do que qualquer outra cidade, tem tido em Viseu nos últimos séculos, sobretudo no século passado.
Hoje não tenho a certeza se essa influência e essa importância é ainda tão nítida. Conheço alguns indícios que a parecem testemunhar: os diários portuenses julgo que ainda são mais vendidos que os lisboetas; sei que no sector comercial, sobretudo nos estabelecimentos mais antigos e mais populares, há ainda muitas referências aos comerciantes e às indústrias do Norte. No entanto, esses são indícios muito limitados e um tanto frágeis. Eu sei, também, que há cerca de 20 anos um geógrafo escreveu a propósito de Viseu: "O Porto é, para todo o Norte e desde há muito, o principal centro de atracção; aí se fornecem os retalhistas, aí procuram melhor vida os filhos das famílias humildes, antes de virem para Lisboa. A tradição do seu comércio laborioso e sério era muito viva há duas gerações. Pela proximidade, tanto como pelas relações económicas, a influência do Porto prevaleceu, talvez até à primeira guerra mundial" (Orlando Ribeiro, "A Rua Direita de Viseu", in Geographica, 16, Lisboa, 1968, p. 63). Mas hoje, depois de tantas mudanças, ainda é essa a situação? Apenas um cuidado estudo geográfico-sociológico poderia responder a esta questão.
Porém, mesmo com estas dúvidas, parece-me que nada há que justifique o desprezo pelas ligações com o Porto.
Quanto mais não fosse, uma maior, identidade histórica e cultural aconselharia uma maior aproximação, Não se trata de negar o interesse de um confronto entre regiões bastante diferentes como são Viseu e Lisboa. Mas para se combater o poder centralizador de Lisboa, uma necessidade em que todos estamos de acordo, apenas regiões com força (demográfica, económica, etc.) poderão ser bem sucedidas. E, segundo o provérbio "a união faz a força".
Estas palavras de apoio às palavras de José Tudella seriam na realidade necessárias? Dizer o que parece evidente? Porém, aqui, outros interesses, além da razão, parecem andar pelo meio. As más línguas, a propósito da via rápida Viseu-Porto que se não faz, insinuam que por aí anda a politica lisboeta. Será verdade?
Referência bibliográfica:
António João Cruz, «Os caminhos da história, das
comunicações e da política (À
atenção de José Tudela)», A Voz
das Beiras, 556, 5-9-1985, pp. 5, 8.
Artigo em formato pdf (versão publicada)
Artigo revisto de acordo com o original dactilografado.
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